A Aguia e a Cruz
O período que se desenvolveu entre 54 e 120 d.C. foi marcante para a história de Roma e do cristianismo. Foi o fim da dinastia júlio-claudiana e o início da dinastia flaviana. O Império Romano enfrentou diversos conflitos no Ocidente e no Oriente Próximo, como o Levante dos Frísios e a Guerra da Germânia em 58, a Revolta da Britânia em 60, a Revolta da Boadicéia em 61, a Revolta da Germânia em 63, a Revolta da Judéiaa partir de 66 e a Revolta de Víndex, na Gália, para citar alguns exemplos.
Roma também viveu um período nefasto na segunda metade do século I d.C., com a cooperação da natureza e do homem. Em 54, durante o reinado de Cláudio, um grande incêndio arrasou o arrabalde do Campo de Marte e, para proteger os depósitos de cereais, o imperador enviou uma coorte de bombeiros. Posteriormente, no outono de 65 uma peste causou 30.000 mortes. Entretanto, a catástrofe que marcou aquele momento histórico foi o incêndio que durante seis dias do ano 64 fez as chamas arderem sobre os prédios de Roma, destruindo-a. Sobre esse incêndio o historiador Tácito escreveu em seus Anais:
Foi o fogo mais horroroso e mais devastador de todos quantos nos tempos passados se tinham visto em Roma. O incêndio começou na parte do
Circo, que está contígua aos montes Palatino e Célio; e dando nas lojas onde encontrou matérias de combustão apareceu logo com tal violência, ajudado pelo vento, que tomou todo o espaço do circo, em que os palácios não tinham pátios em roda, nem os templos muros alguns, e enfim nada havia que o pudesse retardar [...] Com efeito, das quatorze regiões (bairros) de Roma só quatro se conservaram inteiros; três ficaram completamente arrasados; e sete apenas mostravam alguns vestígios de edifícios abatidos, e meio devorados. (XV,38.40).
Circo, que está contígua aos montes Palatino e Célio; e dando nas lojas onde encontrou matérias de combustão apareceu logo com tal violência, ajudado pelo vento, que tomou todo o espaço do circo, em que os palácios não tinham pátios em roda, nem os templos muros alguns, e enfim nada havia que o pudesse retardar [...] Com efeito, das quatorze regiões (bairros) de Roma só quatro se conservaram inteiros; três ficaram completamente arrasados; e sete apenas mostravam alguns vestígios de edifícios abatidos, e meio devorados. (XV,38.40).
O incêndio de 64 teve proporções assombrosas e devastou a cidade de Roma e sua população. Quem conseguiu escapar do incêndio contemplou, com assombro, a cidade queimar durante seis dias. Esse incêndio apresenta também elementos políticos. De um lado alguns acusavam o imperador Nero de ser o mandante do incêndio e, de outro, a imputação do crime de incendiários recaía sobre os cristãos.
A acusação contra Nero parece ter ganhado força, tanto que ele foi declaradoinimigo público pelo Senado em 68 e isso depois de diversos conflitos entre o imperador e os senadores, especialmente porque após o grande incêndio Nero construiu uma nova Roma. Se antes a maioria dos prédios era de madeira em ruas estreitas e quarteirões longos, depois do incêndio Nero reconstruiu uma Roma de pedra e mármore, planejada e com ruas largas. Concedeu incentivos a quem reconstruísse rapidamente suas casas e vilas. Porém esse mesmo Nero construiu o seu palácio, a Domus Aurea, unindo os montes Palatino e Esquilino. O vestíbulo era de tamanho suficiente para acomodar uma estátua de Nero, de 120 pés de altura. A entrada era uma colunata tripla que se estendia por uma milha. Havia aposentos de luxo com teto em marfim, jardins e banhos de água sulfurosa, entre outros confortos. Tudo isso expressava a megalomania de Nero que, somada ao seu comportamento que em muitos momentos chocou o patriciado, à morte de Otávia e ao assassinato de sua mãe, Agripina, granjeou-lhe o ódio do Senado. Após a morte de Nero o Senado providenciou o enterro de Agripina. Redescoberta no Renascimento, a Domus Aurea serviu de modelo para os artistas assombrados com a sua beleza.
Até 64 Nero foi um grande administrador e construtor, porém depois abandonou a justiça e conduziu o governo como uma grande pantomina. O poder senatorial foi substituído pelo poder dos libertos. A partir de então se reforçou o mito do Nero incendiário. Ele aparece na obra de Suetônio como aquele que contemplou o incêndio de Roma do alto da torre de Mecenas e cantou o incêndio de Tróia. Sabe-se através de Tácito (Anais XV, 39) que Nero não estava em Roma no momento do incêndio e sim em Âncio, de onde partiu para Roma, chegando quando o fogo já consumia o edifício que ele mandara construir para unir o seu palácio aos jardins do palácio de Mecenas. Porém o mesmo Tácito (Anais XV, 44) nos informa que o boato infamatório de que Nero teria mandado incendiar Roma se espalhara de tal modo que nem os sacrifícios, as preces públicas e as todas as providências humanas foram suficientes para conter ou desvanecer a acusação. E assim, para desviar as suspeitas, Nero arranjou culpados e castigou com penas terríveis homens e mulheres odiados por seus crimes, a quem o vulgo chamava de cristãos (Tácito, Anais XV, 54).
Por que Nero acusou os cristãos? A comunidade cristã existia em Roma desde aproximadamente o ano 50, porém era um pequeno grupo que se negava a prestar culto ao imperador, não oferecia orações pelo mesmo, tinha como seuKyriós Jesus de Nazaré, um judeu crucificado. Esse grupo era tratado com grandes reservas pelos judeus. Para os romanos, o cristianismo era umasuperstitio, ou seja, uma superstição. Suetônio refere-se aos cristãos comogenus hominum superstitionis novae ac maleficae, ou seja, uma espécie de homens afeitos a uma superstição nova e maléfica.
Os cristãos eram uma superstição, uma associação ilegal, um corpo estranho inassimilável pelos romanos porque se negavam a praticar o culto cívico e também por não serem assimilados pelos seus pares, os judeus, embora menos violentos que estes últimos. Numericamente eram poucos e por isso dariam menos problemas para Nero. Mesmo assim, os requintes de crueldade e violência de Nero para punir os cristãos -- chegou a transformar alguns em tochas humanas para iluminar os jantares nos seus jardins -- chocaram os próprios romanos, a ponto de Tácito (XV, 44) tê-lo classificado com o termoabsumerentur (destruidor, devorador, bárbaro). Assim se construiu a imagem do Nero incendiário e perseguidor dos cristãos, que adquiriu forma na obra História Eclesiástica, de Eusébio de Cesaréia, onde se lê (25, 1-3): “Quando Nero viu consolidado o seu poder, começou a empreender ações ímpias e muniu-se contra o culto do Deus do universo[...] Foi o primeiro dos imperadores a mostrar-se contra a piedade para com Deus.”
Aos poucos os cristãos transformaram Nero em anticristo, como atesta a obraCidade de Deus, de Santo Agostinho (Livro XX, 19). A idéia de considerar Nero o adversário do Cristo se perpetuou e na Idade Média muitos diziam que a nogueira que crescera no local onde as suas cinzas foram sepultadas era maldita e que os corvos na árvore eram demônios a seu serviço. Em 1099 o Papa Pascoal II mandou construir sobre o túmulo de Nero a Igreja Santa Maria Del Popolo, sepultando o anticristo.
Com a transformação do cristianismo em religião oficial do Império, a história foi escrita sob a ótica cristã, ou seja, uma releitura da história de Roma e da religião cristã com diversas ressignificações de fatos e textos históricos.
Texto do livro “A águia e a cruz”
Gilberto Aparecido Angelozzi é doutorando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Mestre em História pela Universidade Federal Fluminense. É graduado em História e Teologia pela PUC-SP. Dedica-se ao estudo da religião cristã e das suas manifestações na política e na cultura das sociedades da Antiguidade Clássica, da Idade Média e da América Latina na atualidade.
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